Para quem trabalha em contato direto com textos o dia todo, a leitura tem funções claras: apreender a ideia mais ampla; entender o significado da unidade conceitual básica, quer seja o parágrafo, a frase ou a palavra; pensar a ideia da língua original na língua alvo; reestruturá-la na língua alvo; reler e verificar a compreensibilidade; buscar e corrigir erros de vários tipos e por aí afora.
Como parte fundamental de nosso ofício, a leitura é pragmática e, muitas vezes, feita sob a pressão do tempo, do desempenho e das cobranças pessoais e alheias, quer por necessidade ou contingência. Distanciamo-nos do texto e o observamos com olhar crítico para encontrar e eliminar suas fraquezas. É desse processo que nascem as obras claras, precisas, prazerosas de ler.
Quando lemos nos momentos de lazer, nos posicionamos diante do texto com menos pressões e, talvez, mais expectativas. Queremos que ele nos informe, entretenha, descanse, emocione, transporte para outros universos, conduza à reflexão e formação de novos conceitos. Ainda assim, muitas vezes, é inevitável detectar erros, pensar em como teríamos feito diferente, sentir uma medida de frustração pelo modo como o autor se expressou ou pelas escolhas do tradutor.
Tamanho é o poder da palavra escrita que Deus escolheu se revelar por meio dela. Qual deve ser, então, nossa abordagem diante da revelação divina em forma de texto? Deve assemelhar-se à postura que assumimos como profissionais ou como leitores e interessados? As respostas dependem do objetivo. Podemos ler a Bíblia por vários motivos, inclusive para encontrar erros, incoerências e pontos fracos, como fazem muitos. Podemos vê-la como livro de estudos, manual de instruções, relato histórico, literatura antiga, etc. Quem trabalha nos meios editoriais cristãos, muitas vezes tem contato diário com as Escrituras como texto-base para comentários bíblicos, livros de teologia e afins.
Para captar sua essência revelacional, porém, não podemos ser apenas pragmáticos ou curiosos, analíticos ou interessados.
Por ser a revelação do Ser divino, o texto bíblico exige aquilo que nenhum outro texto tem o direito de exigir: reverência, humildade, sujeição, obediência (termos que nem sempre agradam muito nossa mente pós-moderna). Em contrapartida, proporciona aquilo que nem as maiores obras-primas da literatura podem proporcionar, a saber, conhecimento verdadeiro e relacionamento com o Deus que criou e controla todas as coisas, com o Deus que oferece a eternidade ao lado dele para ampliar esse conhecimento e desenvolver esse relacionamento.
Diante disso tudo, há momentos em que precisamos colocar de lado todas as formas de leitura às quais estamos habituados e adotar um modo diferente de ler: a lectio divina.
Apesar de ser associada hoje em dia à vida monástica ou aos que adotam um estilo mais contemplativo a arte de “orar as Escrituras” era prática comum de quase todos os cristãos da antiguidade. É o que diz Luke Dysinger em sua descrição dos passos dessa forma de leitura: Accepting the Embrace of God: The Ancient Art of Lectio Divina. O texto (em inglês) é relativamente curto e apresenta com clareza quatro movimentos da leitura espiritual, que é como Eugene Peterson chama o exercício em seu livro Maravilhosa Bíblia (trad. Neyd Siqueira; Mundo Cristão, 2008).
Os movimentos são:
Lectio – Ouvir / ler o texto bíblico profundamente com todo nosso ser. Assumir uma postura de reverência e atenção em busca da palavra que Deus quer destacar para nós naquele momento.
Meditatio – Ao encontrar a palavra ou expressão que mais nos chama a atenção, devemos fazer uma pausa para “ruminar” a seu respeito, guardá-la e meditar no coração (Lucas 2.19). Por meio da meditação, permitimos que a palavra de Deus nos toque nos níveis mais profundos.
Oratio – O terceiro passo é o diálogo com Deus no qual não apenas dizemos a ele o que entendemos e como sua palavra nos tocou, mas também nos aquietamos para continuar a ouvi-lo falar. Consagramo-nos a ele e pedimos que nos ajude a aplicar a palavra.
Contemplatio – Por fim, simplesmente descansamos na presença Daquele nos convidou para esse relacionamento por meio de Cristo e, deixando todas as palavras para trás, nos aquietamos e desfrutamos sua presença.
A consequência dos quatro passos acima é Actio – a palavra se reflitirá em nossas ações e atitudes e trará mudanças reais e visíveis em todos os âmbitos, inclusive o profissional.
Converse com Deus sobre a forma como você lê a palavra de revelação. Ele criou a linguagem e a capacidade humana de compreendê-la. Ele nos convida a um relacionamento profundo por meio da comunicação escrita, mas, como sempre, também nos chama para algo que vai muito além. Da próxima vez que você fizer uma pausa para ler o texto mais importante de todos, não o faça apenas como editor, tradutor, revisor ou leitor interessado. Aproxime-se da palavra como filho que volta ao Pai, como criatura que adora ao Criador, como remido que deseja conhecer Aquele com quem os salvos vão passar a eternidade.
Boa leitura!