quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Traduzir é uma vocação?

Comecemos pela definição do termo “vocação”:

Houaiss

1. Disposição natural e espontânea que orienta uma pessoa no sentido de uma atividade, uma função ou profissão; pendor, propensão, tendência. / 2. Derivação: por extensão de sentido: qualquer aptidão ou gosto natural; disposição, pendor, talento.

Aurélio

1.Ato de chamar. / 2.Escolha, chamamento, predestinação. / 3.Tendência, disposição, pendor. / 4.P. ext. Talento, aptidão.

O sentido em inglês é um pouco diferente:

American Heritage Dictionary

1. A regular occupation, especially one for which a person is particularly suited or qualified. / 2. An inclination, as if in response to a summons, to undertake a certain kind of work, especially a religious career; a calling.

A julgar por essas definições, parece correto chamar a atividade de alguns tradutores de vocação. Apesar de nem todos possuírem a disposição natural, o talento e o chamamento de cunho religioso, muitos enxergam sua ocupação por esse prisma.

A forma como encaramos o trabalho influencia pequenas e grandes decisões e define o aspecto de nossa rotina. Daí, a importância de refletirmos sobre a questão com uma visão bíblica.

Sem entrar, por ora, em considerações mais profundas sobre “chamamento”, gostaria de ressaltar algumas considerações bastante pertinentes da obra O Cristão e a Cultura (Ed. Cultura Cristã, 2006, 2ª ed., trad. Elizabeth S. C. Gomes) acerca do cristão e sua atividade profissional (negritos meus).

Como uma pessoa moderna pode entender o salmista perdido na impotência do seu lugar no universo? [...] (SL 8.3-6,9) Não é de admirar que João Calvino tenha iniciado suas Institutas dizendo que começar pela contemplação da própria existência, ou da existência de Deus, levava finalmente ao mesmo lugar. Não temos existência independente, mas se tirarmos Deus da nossa visão de mundo (e sabemos que os cristãos também podem fazer isso) ou se o empurrarmos para a área “espiritual”, enquanto nosso trabalho diário continua sendo basicamente “secular”, a maior parte do nosso tempo será gasta naquilo que consideramos ser uma atividade desprovida de significado. É a teologia que dá significado a todas as atividades da existência humana.

Como, nos dias atuais, raramente relacionamos a teologia com a vida (ou seja, não ligamos o vertical com o horizontal), raramente somos confrontados com as reflexões do salmista. Raramente somos cativados pela percepção da nossa pequenez que se transforma na percepção de significado com base na vocação que Deus nos deu como suas criaturas especiais. O salmista não disse, depois de reconhecer a sua relativa insignificância diante da escala cósmica: “Mas afinal de contas, eu sou o diretor-executivo e consegui muito na minha carreira” [...] Sua importância vinha do reconhecimento, não do que havia realizado, mas do fato de que Deus havia lhe dado uma vocação. [...]

Pelo menos em teoria, se alguém tem essa perspectiva vertical e vê o seu trabalho como um serviço a Deus e ao próximo, até mesmo as tarefas mais simples ganham significado. [...] Deus nos dá a graça de ver toda a vida da sua perspectiva, tudo o que fizermos, por mais simples, mais comum, é feito sob os auspícios do nosso mestre divino. [...]

Um dia, um senhor [...] passou por um lugar em que havia uma construção em andamento. Ele perguntou aos trabalhadores: “O que estão fazendo?”. Um disse: “Estou quebrando pedras da pedreira”. Outro respondeu: “Sou responsável por fazer a argamassa que juntará as pedras”. Um terceiro homem, coberto de lama, empurrava um carrinho de mão, e parou apenas um tempo para dizer com prazer e orgulho: “Estou construindo uma catedral”. O que estamos fazendo com nossa vida? Trabalhando para o final de semana ou construindo uma catedral? Os três homens estavam envolvidos na mesma obra, mas somente um tinha uma visão geral da mesma. Longe da perspectiva transcendente (divina, vertical, teológica), vemos apenas os detalhes da rotina diária: eu registro informações de contabilidade, eu limpo a casa, eu julgo os casos no tribunal, eu digito a correspondência [...] e assim por diante. Porém, quando começamos a assinar as composições das nossas músicas do dia-a-dia com o “Soli Dei Gloria” – Só a Deus a glória – como Bach fazia, até mesmo o trabalho mais enfadonho ou corriqueiro torna-se divino.

Se até mesmo a tarefa mais enfadonha ganha nova dimensão ao ser considerada sob a perspectiva divina, o que dizer da ocupação à qual nos dedicamos com prazer? Quer trabalhemos com textos “cristãos” ou “seculares”, dia após dia, somos capacitados por Deus para traduzir para a glória dele. Se nos esquecermos disso, até mesmo o projeto mais gratificante perderá o sentido. Deus continuará a ser glorificado por meio de outros profissionais e outros trabalhos e continuará a suprir todas as nossas necessidades, mas perderemos parte da alegria de exercer nossa vocação.

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