terça-feira, 28 de agosto de 2007

Entrevista

Ofício de Tradutor

Abaixo, trechos de uma entrevista com Paulo Henriques Britto, poeta, contista, tradutor e professor de tradução. Algumas de suas colocações são bastante cabíveis (ainda que não inteiramente novas). Outras abrem discussões interessantes. A entrevista original foi publicada em Cadernos de Tradução, um periódico da Universidade Federal de Santa Catarina (para mais artigos, ver http://www.cadernos.ufsc.br/online.html) e reproduzida no site http://www.escritoriodolivro.org.br.

Paulo, depois de 23 anos de atividade tradutória e com mais de 100 títulos publicados, você hoje é reconhecidamente um profissional qualificado de tradução. O que é ser tradutor? Quais os resultados exigidos para tal? O que significa ser tradutor no Brasil?

Para ser tradutor, é necessário acima de tudo saber ler e escrever bem na língua para a qual se traduz — o português, no nosso caso. Também é importante conhecer muito bem uma outra língua, a língua da qual se traduz — no meu caso em particular, o inglês. Mas esse segundo requisito não é absolutamente vital como o primeiro. Já vi casos de uma pessoa fazer uma excelente tradução de uma língua que ele não conhece muito bem, consultando falantes nativos, dicionários, etc. Agora, uma pessoa que domina mal o português fazer uma tradução excelente para o português é simplesmente uma impossibilidade. Outras coisas que ajudam são dispor de uma ampla cultura geral, ser um leitor insaciável, ter um interesse onívoro por assuntos os mais diversos (mesmo os aparentemente irrelevantes), amar os dicionários, as enciclopédias, as gramáticas. [...]

Além de tradutor você também é professor de tradução, em suas várias modalidades, especialmente de tradução literária. Historicamente, a prática da tradução antecede a reflexão sobre esta prática, e há inúmeros exemplos de traduções que se tornaram obras-de-arte, feitas por tradutores não-teóricos. Até que ponto a teoria da tradução é ou pode ser importante para a prática da tradução, e contribuir para a qualidade da tradução?

É perfeitamente possível ser excelente tradutor sem ter qualquer formação teórica na área de tradução. Por outro lado, toda a prática tradutória está associada a uma postura teórica, ainda que implícita e inconsciente, de modo que a reflexão teórica tem o efeito de tornar o tradutor mais cônscio do que antes, o que só pode fazer bem para a qualidade do seu trabalho.
[...]

Apesar de muitos autores como Borges, Meschonnic, e outros, reconhecerem na tradução um caráter de literatura na língua de chegada, parece ser ainda um consenso entre os leitores comuns e mesmo entre os mais letrados que traduzir é trair. Como você se posiciona frente a esta afirmação?

A afirmação de que traduzir é trair é fruto de um impulso que pode ser resumido na expressão "ou tudo ou nada" — ou nesta outra formulação, dostoievskiana: "Se Deus não existe, tudo é permitido." A meta do trabalho do tradutor é, ou deve ser, a meu ver, a transparência — a reprodução na língua B de todos os efeitos textuais de um original na língua A. Isso, naturalmente, é impossível, já que os recursos dos dois idiomas não coincidem, e a intenção do autor do original é inatingível, e o tradutor não consegue evitar se colocar na tradução, e mais todas as outras razões levantadas pelos teóricos radicais de nosso tempo. Bem, se a tradução não é perfeita — é esta a conclusão dostoievskiana — então é uma traição, é uma falsidade. E neste caso — é a conclusão de alguns teóricos radicais —, já que é mesmo impossível a tradução perfeita, já que mesmo sem querer vou colocar coisas minhas na minha tradução, que afinal de contas é um texto meu, o que me impede de colocar minha própria indignação contra o tratamento dado pela sociedade atual à mulher, ao homossexual e aos povos nativos nesta minha tradução de Ovídio? É o mesmo impulso que há por trás de um raciocínio como: já que não posso ser uma pessoa totalmente perfeita, imitação irretocável de Cristo, então vou me tornar um criminoso totalmente amoral. Humano, demasiadamente humano. Mas muito pouco sensato, a meu ver.[...]

No histórico de sua prática de tradução se evidenciam dois processos: da língua estrangeira para o português e do português para a língua estrangeira. Os problemas de tradução são os mesmos em ambos os processos? Ou, em que se diferenciam?

São duas coisas muito diferentes. Embora o inglês seja para mim algo mais que uma língua estrangeira, já que o aprendi antes da puberdade e convivo com ele quase cotidianamente desde então, traduzir do português para o inglês é para mim sempre uma certa forçação de barra, uma atividade "antinatural" em algum sentido do termo. Para resumir, eu diria que ao traduzir do inglês para o português meu trabalho é basicamente subtrativo: ocorrem mil possibilidades e eu vou excluindo várias até chegar à melhor: enquanto que ao fazer versão o processo é somativo: vou somando esta e aquela solução até conseguir traduzir o todo. Não há, na versão, a abundância de possibilidades que ocorre na tradução, e sim a construção laboriosa de uma única solução, claramente não a ideal, mas a melhor de que sou capaz. Por esse motivo, evito verter para o inglês obras literárias, limitando-me a trabalhar com textos ensaísticos.

[...]

Como você vê a crítica da tradução? Ela existe? É positiva, nociva?

De modo geral, os críticos ignoram solenemente o tradutor ao discutir a obra traduzida. Na melhor das hipóteses, tudo o que aparece é um adjetivo: "na competente tradução de Fulano..." e toca a discutir o livro, que é o que importa. Na pior, a referência à tradução é feita num parágrafo final, onde são apontadas duas ou três "pérolas", seguidas do comentário: "Porém os absurdos da tradução não chegam a comprometer a leitura da obra, a qual..." Mas o mais comum mesmo é o tradutor não ser nem mesmo mencionado. Só em tradução de poesia é comum dar-se atenção ao pequeno detalhe de que o livro original não foi escrito em português, que outra pessoa que não o autor foi responsável por colocar em ordem as palavras que o leitor tem diante de seus olhos. [...]

Para mais sobre Paulo Henrique Britto, veja a página pessoal dele: http://www.phbritto.org/

terça-feira, 21 de agosto de 2007

Quem tem medo da Wikipédia?


Tempos atrás, as enciclopédias eram símbolos de status. Volumes encadernados com capas vistosas eram colocados na estante da sala para dar ao ambiente um ar de erudição ou, quem sabe, para contrabalançar o peso da televisão. Compradas em quase tantas prestações quanto o número de volumes, as enciclopédias eram divulgadas de porta em porta por vendedores sorridentes que prometiam acrescentar ao pacote, sem custo adicional, um atlas, um livro de receitas e um almanaque. A casa do aluno que possuía uma enciclopédia se tornava o ponto de encontro dos trabalhos em grupo. E se o feliz proprietário dos livros de pesquisa também mantivesse um estoque generoso de refrigerante, bolachas e salgadinhos, poderia garantir pelo menos meia dúzia de colegas amigáveis.

Passada a idade escolar, o profissional que dependia de materiais de referência e trabalhava em casa (escritores e tradutores, entre outros) precisava investir alto ou fazer um sem número de viagens à biblioteca mais próxima. O ritmo de trabalho era lento. Os alérgicos a pó e mofo tinham de pensar duas vezes antes de ingressar numa carreira desse tipo e correm boatos que um ou outro tradutor solitário acabou fazendo amizade com as traças que também freqüentavam os livros de consulta.

Então veio a Encarta, uma das primeiras enciclopédias digitais. Mal o povo cansou de se maravilhar com os mais de 60 mil verbetes e centenas de fotos, arquivos de som e filmes e nasceram as enciclopédias on-line.

As inovações se deram em sucessão rápida e culminaram com a maior fonte aberta de referência: a Wikipédia. Atualmente se aproximando dos milhões de verbetes, a Wikipédia impressiona, no mínimo, pela variedade de temas.

Mas será que uma enciclopédia aberta que permite a contribuição do cidadão comum é confiável? Até que ponto o tradutor pode usá-la como referência?

O site Pandia, que reúne várias ferramentas de busca em um único portal acabou de divulgar o resultado de um estudo comparativo realizado com a WIkipédia e outras cinco enciclopédias on-line. A conclusão:

As far as we can see, the Wikipedia has no serious competitor on the net as regards free encyclopedia. MSN’s Encarta is worth a try, also in its free version, but all the other online encyclopedias we have tested are not useful for serious analytical work.

If one of the major encyclopedias decides to give free access to all its information, the picture may change. This is obviously a matter of economy.

Veja a reportagem completa em http://www.pandia.com/sew/494-encyclopedias.html.

Então, como usar a Wikipédia com tranqüilidade? Eis algumas sugestões:

1. Pesquise o verbete em inglês na Wikipédia e verifique se o mesmo existe em português (ver menu do lado esquerdo da página – “In other languages”).

2. Em seguida, empregue uma ferramenta de busca para verificar o uso desse termo em outros lugares. Analise os resultados. O termo é usado em sites confiáveis?

3. Outra possibilidade é usar a Wikipédia como ponto de partida para a pesquisa. Os itens “References”, “Bibliography” e, especialmente “External Links” são, em geral, bastante úteis.

4. Quando um verbete em inglês ainda não tem tradução para o português, pode-se pesquisar em espanhol, italiano, francês e, se descuidar, até em galego. Partindo de uma aproximação românica (neolatina), é mais fácil iniciar a investigação com outra ferramenta de busca.

5. Mesmo que o verbete só exista em inglês, muitas vezes vale a pena fazer uma leitura rápida do texto em busca de termos relacionados que possam apontar o caminho para a pesquisa com outra ferramenta.

6. Por fim, a Wikipédia em inglês é bastante útil para encontrar informações sobre a cultura. Vários autores evangélicos citam nomes de celebridades, programas de televisão, obras clássicas e outros elementos culturais. A Wikipédia pode ser uma boa referência para elaborar uma “nota do tradutor” quando isso se fizer necessário.

Qual a sua dica de pesquisa? Como você usa enciclopédias e ferramentas de busca?

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

A Translator's Prayer

Estas palavras atribuídas a Tomás de Aquino poderiam muito bem ser chamadas de "Oração de um Tradutor", pois quem traduz com dedicação precisa ser um eterno estudante e um aprendiz humilde Daquele "em quem todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento estão ocultos" (Cl 2.3).





A Student's Prayer
by St. Thomas Aquinas

Creator of all things,
true source of light and wisdom,
origin of all being,
graciously let a ray of your light penetrate
the darkness of my understanding.
Take from me the double darkness
in which I have been born,
an obscurity of sin and ignorance.
Give me a keen understanding,
a retentive memory, and
the ability to grasp things
correctly and fundamentally.
Grant me the talent
of being exact in my explanations
and the ability to express myself
with thoroughness and charm.
Point out the beginning,
direct the progress,
and help in the completion.
I ask this through Christ our Lord.
Amen
.

domingo, 12 de agosto de 2007

O queijo e o "sabão de escrever"

Abaixo, trechos de um capítulo do curso gratuíto de tradutologia oferecido pela empresa LOGOS, um bureau de serviços na área de lingüística. O curso fornece uma base teórica interessante para aqueles que (como eu) não têm formação acadêmica em letras / tradução.


Para conferir o curso completo:

http://www.logos.it/pls/dictionary/linguistic_resources.traduzione_bp?lang=bp

Jakobson e a Tradução (Primeira Parte)

Entre as obras de Jakobson, destaca-se sobremaneira um ensaio, de 1959, por sua importância no âmbito das reflexões gerais e fundamentais sobre os problemas da tradução. On Linguistic Aspects of Translation concentra, em sete páginas, o que mais de quarenta anos depois continua sendo um recurso incomparável para aqueles que investigam a natureza do processo de tradução. [...]

Um dos primeiros e mais importantes critérios é o seguinte:

"No one can understand the word 'cheese' unless he has a nonlinguistic acquaintance with cheese" (Não pode entender a palavra "queijo" quem careça de um conhecimento não lingüístico do queijo).

É uma frase de Bertrand Russell, citada Jakobson. O que Russell afirma é que as palavras, por si sós, são incapazes de transmitir significados que não tenham raízes em uma experiência direta e subjetiva do objeto do discurso.

É uma afirmação controvertida para um tradutor, pois sua aceitação implicaria que para um sujeito não familiarizado com uma cultura determinada seria impossível assimilar palavras que façam referência a conceitos ou objetos próprios de tal cultura e alheios à do tradutor.

Jakobson questiona essa afirmação com o argumento de que a solução consistiria em explicar que "queijo" significa "alimento obtido por maturação da coalhada". Para um indivíduo pertencente a uma cultura na qual não existisse o queijo, bastaria saber o que é "coalhada" para ter uma idéia do que pode significar "queijo". O processo de significação age com freqüência deste modo. Quando se diz que, depois de escapar do Egito, os judeus se alimentaram de "maná" em sua longa travessia, como leitores da Bíblia, embora nunca tenhamos comido maná, podemos ter uma idéia do que significa, que será diferente para cada um, embora com características comuns.

Jakobson obtém desta argumentação uma conclusão fundamental:

"The meaning [...] of any word or phrase whatsoever is definitely [...] a semiotic fact" (O significado de qualquer palavra ou frase é sempre um fato semiótico).

Não tem sentido, portanto, atribuir um significado (signatum) ao objeto em si nem ao signo (signum): ninguém percebeu jamais o odor ou sabor do significado de "queijo" ou "maçã". Somente pode existir signatum se existe signum. Uma pessoa que saboreie um queijo gorgonzola ou emmenthal não pode deduzir, sem a ajuda de um código verbal, o significado da palavra "queijo", porque, para explicar o significado de uma palavra desconhecida, é necessário contar com uma série de signos lingüísticos.

O significado de uma palavra - se permanecemos no contexto verbal - não é outra coisa que sua tradução para outras palavras. Aqui observamos a importância da tradução, em um sentido amplo, para a comunicação em geral e para a comunicação intercultural em particular. Sem tradução seria impossível alcançar que uma pessoa compreendesse objetos que não façam parte de sua cultura. [...]

Explicar o significado de uma expressão com outras palavras é sempre fruto de uma interpretação, que pode variar em função de quem o faça. A partir deste fato, podemos também deduzir a variedade de versões possíveis que oferece a tradução interlingüística. [...]

É impossível definir um único método para enfrentar o problema do resíduo ou perda na tradução. Por exemplo, o povo chukchi, do noroeste de Sibéria, chama a rosca de "prego giratório", o aço de "ferro duro", a lata de "ferro delgado" e o giz de "sabão de escrever"

Porém, como sabe muito bem qualquer tradutor técnico ou literário, nem sempre basta dizer a palavra justa; muitas vezes é essencial dizê-la também da maneira adequada. [...]

Bibliografia

JAKOBSON R. On Linguistic Aspects of Translation, in Language in Literature, edição de Krystyna Pomorska e Stephen Rudy, Cambridge (Massachusetts), Harvard University Press, 1987, p. 428-435. ISBN 0-674-51028-3.

Para quem se habilitar, fica a questão: Como aplicar os conceitos acima à tradução de livros sobre “vida cristã” ou “espiritualidade”, por exemplo, nos quais não faltam termos intimamente associados a elementos culturais norte-americanos?

sábado, 11 de agosto de 2007

Convite de Inauguração

Puxar conversa com uma pessoa desconhecida pode ser difícil. Mais complicado ainda é tentar inicar um diálogo com várias pessoas que você não conhece. É como ir à praça de alimentação de um shopping às duas da tarde de domingo, subir numa mesa, bater com a faca no copo e gritar: “Aí pessoal, todo mundo prestando atenção que eu tenho um assunto importante para tratar com vocês!”. É mais provável esse indivíduo acabar entabulando uma conversa com o segurança...

De certa forma, este primeiro post é isso: bater com a faca no copo, não com a intenção de fazer um discurso pomposo, mas sim, de chamar os que estão ao arredor para um bate-papo num ambiente, espero eu, mais apropriado – um café aberto para tradutores & cia.

Este é um convite para dialogarmos sobre nosso trabalho – o ofício (ou seria a arte?) de traduzir. Em geral, trabalhamos sozinhos, cada em seu canto com seus desafios, dúvidas, experiências e realizações. O que aconteceria se, de tempos em tempos, nos encontrássemos aqui para compartilhar um pouco disso tudo? Será que não sairíamos todos um pouco mais enriquecidos e fortalecidos para o nosso labor diário e nossos desafios profissionais e pessoais?

Eu acredito que sim e, se você concorda, puxe uma cadeira, fique à vontade e deixe seu comentário sobre o que gostaria de ver no “cardápio” do nosso café.

E lembre-se de voltar sempre para conferir as novidades!