Abaixo, trechos de uma entrevista com Paulo Henriques Britto, poeta, contista, tradutor e professor de tradução. Algumas de suas colocações são bastante cabíveis (ainda que não inteiramente novas). Outras abrem discussões interessantes. A entrevista original foi publicada em Cadernos de Tradução, um periódico da Universidade Federal de Santa Catarina (para mais artigos, ver http://www.cadernos.ufsc.br/online.html) e reproduzida no site http://www.escritoriodolivro.org.br.
Paulo, depois de 23 anos de atividade tradutória e com mais de 100 títulos publicados, você hoje é reconhecidamente um profissional qualificado de tradução. O que é ser tradutor? Quais os resultados exigidos para tal? O que significa ser tradutor no Brasil?
Para ser tradutor, é necessário acima de tudo saber ler e escrever bem na língua para a qual se traduz — o português, no nosso caso. Também é importante conhecer muito bem uma outra língua, a língua da qual se traduz — no meu caso em particular, o inglês. Mas esse segundo requisito não é absolutamente vital como o primeiro. Já vi casos de uma pessoa fazer uma excelente tradução de uma língua que ele não conhece muito bem, consultando falantes nativos, dicionários, etc. Agora, uma pessoa que domina mal o português fazer uma tradução excelente para o português é simplesmente uma impossibilidade. Outras coisas que ajudam são dispor de uma ampla cultura geral, ser um leitor insaciável, ter um interesse onívoro por assuntos os mais diversos (mesmo os aparentemente irrelevantes), amar os dicionários, as enciclopédias, as gramáticas. [...]
Além de tradutor você também é professor de tradução, em suas várias modalidades, especialmente de tradução literária. Historicamente, a prática da tradução antecede a reflexão sobre esta prática, e há inúmeros exemplos de traduções que se tornaram obras-de-arte, feitas por tradutores não-teóricos. Até que ponto a teoria da tradução é ou pode ser importante para a prática da tradução, e contribuir para a qualidade da tradução?
É perfeitamente possível ser excelente tradutor sem ter qualquer formação teórica na área de tradução. Por outro lado, toda a prática tradutória está associada a uma postura teórica, ainda que implícita e inconsciente, de modo que a reflexão teórica tem o efeito de tornar o tradutor mais cônscio do que antes, o que só pode fazer bem para a qualidade do seu trabalho.
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Apesar de muitos autores como Borges, Meschonnic, e outros, reconhecerem na tradução um caráter de literatura na língua de chegada, parece ser ainda um consenso entre os leitores comuns e mesmo entre os mais letrados que traduzir é trair. Como você se posiciona frente a esta afirmação?
A afirmação de que traduzir é trair é fruto de um impulso que pode ser resumido na expressão "ou tudo ou nada" — ou nesta outra formulação, dostoievskiana: "Se Deus não existe, tudo é permitido." A meta do trabalho do tradutor é, ou deve ser, a meu ver, a transparência — a reprodução na língua B de todos os efeitos textuais de um original na língua A. Isso, naturalmente, é impossível, já que os recursos dos dois idiomas não coincidem, e a intenção do autor do original é inatingível, e o tradutor não consegue evitar se colocar na tradução, e mais todas as outras razões levantadas pelos teóricos radicais de nosso tempo. Bem, se a tradução não é perfeita — é esta a conclusão dostoievskiana — então é uma traição, é uma falsidade. E neste caso — é a conclusão de alguns teóricos radicais —, já que é mesmo impossível a tradução perfeita, já que mesmo sem querer vou colocar coisas minhas na minha tradução, que afinal de contas é um texto meu, o que me impede de colocar minha própria indignação contra o tratamento dado pela sociedade atual à mulher, ao homossexual e aos povos nativos nesta minha tradução de Ovídio? É o mesmo impulso que há por trás de um raciocínio como: já que não posso ser uma pessoa totalmente perfeita, imitação irretocável de Cristo, então vou me tornar um criminoso totalmente amoral. Humano, demasiadamente humano. Mas muito pouco sensato, a meu ver.[...]
No histórico de sua prática de tradução se evidenciam dois processos: da língua estrangeira para o português e do português para a língua estrangeira. Os problemas de tradução são os mesmos em ambos os processos? Ou, em que se diferenciam?
São duas coisas muito diferentes. Embora o inglês seja para mim algo mais que uma língua estrangeira, já que o aprendi antes da puberdade e convivo com ele quase cotidianamente desde então, traduzir do português para o inglês é para mim sempre uma certa forçação de barra, uma atividade "antinatural" em algum sentido do termo. Para resumir, eu diria que ao traduzir do inglês para o português meu trabalho é basicamente subtrativo: ocorrem mil possibilidades e eu vou excluindo várias até chegar à melhor: enquanto que ao fazer versão o processo é somativo: vou somando esta e aquela solução até conseguir traduzir o todo. Não há, na versão, a abundância de possibilidades que ocorre na tradução, e sim a construção laboriosa de uma única solução, claramente não a ideal, mas a melhor de que sou capaz. Por esse motivo, evito verter para o inglês obras literárias, limitando-me a trabalhar com textos ensaísticos.
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Como você vê a crítica da tradução? Ela existe? É positiva, nociva?
De modo geral, os críticos ignoram solenemente o tradutor ao discutir a obra traduzida. Na melhor das hipóteses, tudo o que aparece é um adjetivo: "na competente tradução de Fulano..." e toca a discutir o livro, que é o que importa. Na pior, a referência à tradução é feita num parágrafo final, onde são apontadas duas ou três "pérolas", seguidas do comentário: "Porém os absurdos da tradução não chegam a comprometer a leitura da obra, a qual..." Mas o mais comum mesmo é o tradutor não ser nem mesmo mencionado. Só em tradução de poesia é comum dar-se atenção ao pequeno detalhe de que o livro original não foi escrito em português, que outra pessoa que não o autor foi responsável por colocar em ordem as palavras que o leitor tem diante de seus olhos. [...]
Para mais sobre Paulo Henrique Britto, veja a página pessoal dele: http://www.phbritto.org/