sábado, 24 de maio de 2008

Paulo e suas senhoritas, Branca de Neve e sua folha

Um dia desses, estava traduzindo um comentário bíblico quando me deparei com a seguinte frase: “The apostle Paul was not interested in wild misses”. Sem contexto, a frase poderia ser traduzida como: “O apóstolo Paulo não estava interessado em senhoritas arrojadas”. Pode até ser verdade, mas sem dúvida não era isso que o autor queria dizer. O contexto era 1Coríntios 9.25-26: “Todo atleta em tudo se domina; aqueles, para alcançar uma coroa corruptível; nós, porém, a incorruptível. Assim corro também eu, não sem meta; assim luto, não como desferindo golpes no ar”. Oh, I see... Diante disso, considerei apropriado traduzir a frase como: “O apóstolo possuía um objetivo e se esforçava para alcançá-lo”, ou algo do gênero. Esse pequeno episódio me fez voltar ao segundo capítulo do livro Quase a mesma coisa, o rico texto de Umberto Eco sobre tradução.

A certa altura, Eco observa:

Portanto, em um texto — que já é substância realizada — temos uma Manifestação Linear (o que se percebe, lendo ou ouvindo) e o sentido ou sentidos daquele determinado texto. Quando tenho de interpretar uma Manifestação Linear recorro a todos os meus conhecimentos lingüísticos, mas um processo bem mais complicado acontece no momento em que tento distinguir o sentido do que me é dito.

Como primeira tentativa, tento compreender o sentido literal, se não for ambíguo, e correlacioná-lo eventualmente a mundos possíveis: assim, se leio Branca de Neve come uma maçã, saberei que um indivíduo de sexo feminino está mordendo, mastigando e engolindo pouco a pouco uma fruta assim e assado, e farei uma hipótese sobre o mundo possível onde se está desenrolando a cena. É o mundo em que vivo e no sal se considera que an apple a day keeps the doctor away ou um mundo fabulístico onde, ao comer uma maçã, pode-se cair vítima de um sortilégio? Se decidisse pelo segundo sentido, é claro que recorreria a competências enciclopédicas, entre as quais existem também as competências de gênero literário, e a enredos intertextuais (nas fábulas acontece geralmente que...). Naturalmente, continuarei a explorar a Manifestação Linear para saber algo mais sobre essa Branca de Neve e sobre o lugar e a época em que se desenrola a história.

Mas é bom notar que, se lesse Biancaneve ha mangiato la foglia [Branca de Neve comeu a folha], provavelmente recorreria a uma outra série de conhecimentos enciclopédicos, com base nos quais os seres humanos raramente comem folhas: daí daria início a uma série de hipóteses a serem verificadas no curso da literatura para decidir se Branca de Neve não seria, por acaso, o nome de uma cabritinha...

“Paulo e suas senhoritas” e Branca de Neve com suas maçãs e folhas servem para nos lembrar da importância de mantermos o contexto em mente a todo tempo enquanto trabalhamos. Um tradutor pouco familiarizado com textos bíblicos que se esquecesse do contexto poderia, por exemplo, considerar aceitável traduzir a high priest [um sumo sacerdote] como “um padre embriagado” e assim por diante.

Além do contexto imediato da frase, não podemos nos esquecer do pano de fundo mais amplo: a obra em que se encontra e o tempo, a cultura e a realidade em que foi escrita.

Eco termina o capítulo comentando:

Como em um texto com finalidade estética colocam-se relações sutis entre os vários níveis de expressão e do conteúdo, é em torno da capacidade de identificar esses níveis, de restituir um ou outro (ou todos, ou nenhum) e de saber colocá-los na mesma relação em que estavam no texto original (quando possível), que se joga o desafio da tradução.

Se você tem exemplos de frases traduzidas fora de contexto, compartilhe-as conosco, acompanhadas, evidentemente, da tradução apropriada.

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