Passou-se um mês desde que escrevi o último post aqui. Trinta dias lutando para encontrar equilíbrio entre trabalho dentro e fora do escritório (afinal, cultivar relacionamentos, cuidar da família, da casa e de nós mesmos também é trabalho) e ócio (palavra que ainda causa certa aversão por estas bandas, mesmo que seja o tal do “ócio criativo”). Convém lembrar que ócio não significa apenas “preguiça, indolência, moleza”, mas também “folga, repouso” e, mais interessante ainda, “trabalho mental agradável”.
Trabalho mental agradável pode representar coisas diferentes para pessoas diferentes quando levamos em consideração o que é agradável para nós. Podem ser leituras, sonhos, lembranças felizes e por aí afora. Que tipo de trabalho mental, porém, é agradável a Deus?
Renovação interior
Nos últimos meses, tenho lido, relido e conversado com algumas pessoas sobre o livro “A renovação do coração” (Dallas Willard, Ed. Mundo Cristão, tradução de Sueli Saraiva), excelente texto sobre formação espiritual. O capítulo 6 trata da transformação da mente, isto é, a formação espiritual e a vida reflexiva, e começa com a seguinte observação:
Da mesma forma como pela primeira vez desviamos os pensamentos de Deus, assim ocorrem os primeiros movimentos dos pensamentos em direção à renovação do coração. Os pensamentos são o lugar onde podemos e devemos começar a mudar. [...] A máxima liberdade que possuímos como seres humanos é o poder de selecionar aquilo que permitiremos ou exigiremos que habite em nossa mente. Nós não somos totalmente livres a esse respeito. Mas desfrutamos de grande liberdade aqui, e, embora “mortos em [...] transgressões e pecados”, ainda temos a capacidade e a responsabilidade de tentar reter Deus em nosso conhecimento — mesmo que apenas de maneira inadequada e vacilante. E as pessoas que agirem assim com certeza progredirão em direção a Deus, pois se buscarmos o Senhor de fato, com o máximo empenho, ele, que sempre sabe o que na realidade está em nosso coração, fará que o conheçamos de verdade.
O versículo na epígrafe do capítulo é: “Sempre tenho o Senhor diante de mim. Com ele à minha direita, não serei abalado” (Sl 16.8).
Será que sempre temos o Senhor diante de nós na forma de pensamentos a seu respeito? Confesso que grande parte do tempo, minha mente se encontra ocupada com coisas como prazos a cumprir, produtividade (laudas por dia), otimização de tempo, recursos e energia, tarefas domésticas a realizar, marido + amigos + gatos, atividades (e, infelizmente, ativismo) na igreja, yadda, yadda, yadda. Muitos desses pensamentos são legítimos, importantes e, ocasionalmente, até agradáveis. O problema é o lugar central que ocupam na mente e o fato de virem, na maior parte das vezes, desassociados da realidade de Deus.
Quaresma
Para quem não segue o calendário litúrgico, quaresma pode ser o tempo necessário para se recuperar do Carnaval e pensar em formas de se acabar na Páscoa, o próximo feriado prolongado.
Para os mais ortodoxos, porém, o intuito a quaresma (os quarenta dias entre a quarta-feira de cinzas e o domingo da Ressurreição) é proporcionar um tempo de reflexão sobre a morte e ressurreição de Cristo e as implicações práticas dessas duas realidades para o nosso quotidiano. Suspeito que, em parte, nossa dificuldade em ligar as duas coisas se deve a à falta de hábito (preguiça mental?) de pensar sobre essas questões. Permitimos que os pássaros da inquietação, desesperança, orgulho, impureza, ressentimento, ansiedade e egocentrismo não apenas voem sobre nossa cabeça, mas façam ninho dentro dela e cuidamos para que todos estejam sempre bem alimentados.
Alguns dias atrás, traduzi um comentário curto sobre a Epístola aos Efésios. A certa altura, Paulo fala do tema de sua oração pelos cristãos em Éfeso e do Deus a quem dirige essas orações:
Por esta causa, me ponho de joelhos diante do Pai, de quem toma o nome toda família, tanto no céu como sobre a terra, para que, segundo a riqueza da sua glória, vos conceda que sejais fortalecidos com poder, mediante o seu Espírito no homem interior; e, assim, habite Cristo no vosso coração, pela fé, estando vós arraigados e alicerçados em amor, a fim de poderdes compreender, com todos os santos, qual é a largura, e o comprimento, e a altura, e a profundidade e conhecer o amor de Cristo, que excede todo entendimento, para que sejais tomados de toda a plenitude de Deus.
Ora, àquele que é poderoso para fazer infinitamente mais do que tudo quanto pedimos ou pensamos, conforme o seu poder que opera em nós, a ele seja a glória, na igreja e em Cristo Jesus, por todas as gerações, para todo o sempre. Amém! (Efésios 3.14-21)
Esta passagem traz vários termos associados à mente: “compreender”, “conhecer”, “entendimento”, “pensamos”. Paulo sabia do papel fundamental dos pensamentos em nossa formação espiritual. Afinal, os pensamentos “determinam a orientação de tudo o que fazemos e despertam os sentimentos que moldam nosso mundo e motivam nossas ações” (Willard). Paulo também sabia, porém, que não podemos transformar sozinhos nosso modo de pensar. Existem vários passos que podemos dar para ocupar nossa mente com pensamentos agradáveis a Deus que resultarão em uma vida equilibrada, segundo os padrões divinos. Não faltam livros a esse respeito (além de Willard, Eugene Peterson, Phillip Yancey, Larry Crabb, Brennan Manning, Michael Horton e vários outros autores tratam de questões ligadas direta ou indiretamente às disciplinas espirituais). MAS, somente Deus “é poderoso para fazer infinitamente mais do que tudo quanto pedimos ou pensamos”. Somente Deus. A transformação de nosso ser interior se iniciou por iniciativa dele, tem continuidade diária pelo poder dele e “aquele que começou boa obra em vós há de completá-la até ao Dia de Cristo Jesus” (Fp 1.6).
Que tal usarmos os trinta dias que faltam para a Páscoa para pensar em formas criativas de sempre ter o Senhor diante de nós? Para essa tarefa, contamos com a ajuda ao Espírito Santo, aquele que nos ensina todas as coisas e nos faz lembrar de tudo que Jesus ensinou (Jo 14.26).
Na jornada rumo a uma compreensão mais profunda da dimensão do amor de Cristo e da obra que Deus está realizando em nossa vida, continuaremos a pensar em prazos, em preço por lauda, em acordo ortográfico, em cheque especial, no que fazer para o jantar, em cursos para melhorar nossa técnica, no final de semana com amigos, na programação da igreja, no dicionário novo que custa uma fortuna, na goteira no meio da sala, no gato afiando as unhas no sofá, na dor nos punhos e nos olhos cansados. Continuaremos a pensar em tudo isso, mas dentro de um novo padrão de referência, o padrão divino revelado mais claramente entre o Natal e a Páscoa.
Um comentário:
Olá! Tenho estudado os livros de Dallas Willard e os considero realmente inestimáveis. Tenho postado muita coisa sobre ele no blog e na comunidade do Orkut.
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