Até que ponto o tradutor pode ou deve “melhorar” o original?
A resposta a esta pergunta vai depender do objetivo de nosso trabalho. Se considerarmos satisfatório simplesmente transpor para a língua alvo o conteúdo do texto original, bastará corrigir os erros de grafia e gramática (p. ex., concordância). Se, porém, desejarmos ter como resultado final um texto coerente e fluente, no qual as idéias do autor são apresentadas de forma clara e precisa, oferecendo dados corretos, o trabalho poderá ser muito maior.
No caso da tradução literária, dependendo do estado do original, pode ser necessário não apenas investigar outras partes da obra na tentativa de esclarecer as ambigüidades, mas também consultar o autor quanto ao significado de determinadas passagens. Em algumas obras, as idéias são compreensíveis, mas se encontram formuladas de maneira confusa e / ou repetitiva. Em situações como essas, costumo perguntar ao editor até que ponto tenho liberdade de fazer mudanças para articular mais claramente os conceitos apresentados. A resposta normalmente é a mesma: desde que se mantenha o sentido do original e o estilo geral da obra, as construções de frases e até de parágrafos podem ser alteradas para produzir um texto mais harmônico.
É necessário considerar, ainda, as imprecisões. Ao traduzir comentários bíblicos ou outros originais com base em textos das Escrituras, é comum encontrar referências bíblicas incorretas. Na maioria das vezes, esse problema pode ser resolvido facilmente usando-se a ferramenta de busca num software ou site que tenha várias versões da Bíblia em inglês e português como a Biblioteca Digital da Bíblia Libronix ou a Online Bible (ver também lista de sites de referência ao lado). Evidentemente, por uma questão de tempo, o tradutor não poderá verificar todas as referências bíblicas (um comentário pode ter dezenas delas numa única página), mas é importante checar pelo menos aquelas cujo texto é citado e ficar atento para os erros claros (p. ex. referências como Gn 113.12).
O tradutor que trabalha com textos bíblicos, históricos e teológicos precisa ficar alerta, ainda, para personagens, datas e lugares. Nessas horas, o conhecimento acumulado ao longo dos anos de trabalho e leitura ajuda a detectar e retificar os erros. O tradutor especializado em determinados assuntos normalmente tem mais facilidade de lidar com esse tipo de problema, pois consegue acumular conhecimento suficiente pelo menos para detectar as inexatidões e saber onde encontrar as informações necessárias para corrigi-las.
Quando o cliente é o autor do texto, é preciso, evidentemente, usar de muito tato ao procurar esclarecer dúvidas e apontar erros. Por outro lado, o trabalho pode ser mais gratificante, pois um bom diálogo com o autor permitirá a produção de um texto final de melhor qualidade.
Por fim, não devemos nos esquecer dos “casos perdidos”, originais tão mal escritos que não teriam como ser traduzidos e que, talvez, faríamos bem em recusar para não colocar em jogo o nosso nome, pois o leitor final poderia atribuir a condição deplorável do texto ao tradutor.
Sem dúvida as estratégias discutidas acima para trabalhar com um texto problemático exigem tempo, do qual nem sempre dispomos devido à necessidade de cumprir prazos. Mas, à medida do possível, creio que é nossa responsabilidade entregar para a revisão um texto “limpo” e com o menor número possível de erros. Talvez o melhor elogio que um tradutor pode receber de um revisor seja: “Revisar seu trabalho é ganhar dinheiro fácil”.
Mas, se o dinheiro do revisor vai ser tão fácil, por que o nosso tem de ser tão suado? Porque nos preocupamos o suficiente — em primeiro lugar, com nossos leitores e, em segundo lugar com nossa reputação — para andar várias milhas a mais. Nenhum tradutor pode desenvolver uma carreira decente deixando todo o trabalho para o revisor. É preciso ter espírito crítico, interagir com editor, com o autor e, se possível, também com o revisor. A meu ver, vale a pena tentar negociar prazos e vencer a preguiça de pesquisar (quem não tem a dita cuja que atire a primeira enciclopédia).
Se desejamos ser tão respeitados em nossa profissão quanto os autores dos originais, precisamos trabalhar, no mínimo, tanto quanto eles... às vezes muitos mais.
Quais estratégias você usa para lidar com textos problemáticos?
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