sábado, 10 de outubro de 2009

Valores pessoais ou preço por lauda: a escolha do texto


Quando se fala em tradução, valores e crenças, é comum ouvir perguntas como: “O profissional cristão pode traduzir um texto ... (budista, espírita, erótico, violento, etc.)?”. Se “pode” tem o sentido de “é capaz”, a resposta depende da competência do profissional. Um bom tradutor de textos literários, por exemplo, deve ser capaz de traduzir com precisão e fluência cenas de violência extrema descritas em uma obra de ficção. Se, contudo, “pode” tem o sentido de “é legítimo”, a resposta se torna mais complexa, pois depende da consciência do profissional. Um profissional que coloca seus valores pessoais acima do preço por lauda, com certeza vai pensar duas vezes antes de traduzir um texto contrário às suas crenças, sejam elas de ordem religiosa, política, moral ou de qualquer outro tipo. Um tradutor pacifista, por exemplo, irá, no mínimo, hesitar em traduzir um texto que promova o uso de armas, não obstante quanto lhe ofereçam pelo serviço.

Trago o assunto à baila não apenas por exercício teórico. Tenho refletido sobre isso com respeito ao meu trabalho nos últimos dias. Não fui contatada por uma editora de contos eróticos, nem tampouco por um periódico da Cientologia. Creio que teria sido mais fácil lidar com propostas desse tipo.

No caso em questão, a editora cristã X para a qual trabalho há vários anos enviou obra Y de autor Z.

Pontos a considerar:


a) Autor Z é o best-seller da casa, de modo que, como tradutora, sinto-me honrada por receber o trabalho.

b) Não tenho problemas com a linha geral da editora X, respeito e admiro muitos de seus profissionais e aprecio a cultura de trabalho do departamento editorial.

c) Em termos de ideologia/teologia, obra Y não é diferente de obras anteriores do autor Z.

d) Obra Y trata de questões importantes e apresenta alguns pontos positivos. Incentiva, porém, práticas que, a meu ver, se baseiam em distorções teológicas que podem exercer influência negativa sobre os leitores.

e) Já traduzi diversas obras de autor Z e deparei com o mesmo dilema, mas decidi varrê-lo para debaixo do mouse pad e não pensar no assunto.

f) Minha consciência tem me incomodado mais do que em ocasiões passadas. Até quando desejo continuar participando da propagação de uma mensagem que me parece não apenas inócua, mas, em alguns pontos, nociva?

g) Em contrapartida (e aí reside o dilema), se começar a recusar trabalhos por não concordar com a linha do autor em certos pontos da obra, creio que em breve estarei sem serviço, pois é praticamente impossível concordar com 100% daquilo que se lê em qualquer área. Ademais, não quero me transformar em uma daquelas tradutoras com ares de prima donna que exigem trezentas rosas brancas e vinte caixas de chocolate Godiva no camarim para trabalhar.

h) É importante ressaltar que não se trata apenas do medo de “perder serviços”, pois creio que editora X não deixaria de mandar trabalho se eu recusasse autor Z. Os medos são mais profundos e envolvem minha suposta reputação (como os outros me verão se eu fizer isto ou aquilo) e senso de compromisso e responsabilidade em relação aos profissionais da editora em questão.


Não escrevo para dizer que encontrei a solução para o dilema, mas para ventilar as possibilidades que consigo vislumbrar no momento:


a) Posso colocar a questão dentro da gaveta outra vez e aguardar seu reaparecimento quando a editora X solicitar outra tradução de autor Z.

b) Posso conversar com editora X e dizer que, no futuro, prefiro não traduzir textos de autor Z.

c) Posso continuar a orar e pedir sabedoria e discernimento. Em minha opinião, esta alternativa não é igual à alternativa (a), pois implica possibilidades que talvez eu não esteja enxergando no momento.


Na verdade, o dilema envolvendo a sopa de letrinhas acima é apenas um reflexo de outros questionamentos em relação ao modo como devo me posicionar em relação às realidades ao nosso redor. Graças a Deus, nenhum desses questionamentos é novidade e sei que, ao levantá-los, ando na companhia de santos de todas as eras. Ainda assim, cada um de nós precisa lidar com eles em situações de diferentes magnitudes e com diferentes implicações.

Tenho meditado sobre o primeiro capítulo de Daniel, onde o jovem cativo aceita aprender a cultura e ciência dos caldeus (provavelmente contrária às suas crenças em diversos aspectos), mas recusa seguir sua dieta. Como descendente de menonitas que viviam em colônias isoladas do restante da sociedade pecadora, também me pareceu bastante oportuno um artigo publicado recentemente no site da Christianity Today, que mostra duas maneiras de interagirmos com aquilo que entra em conflito com nossas crenças (quer no “mundo secular” ou no “mundo cristão”).


Descanso na promessa viva e real de Tiago 1:5: “Se, porém, algum de vós necessita de sabedoria, peça-a a Deus, que a todos dá liberalmente e nada lhes impropera; e ser-lhe-á concedida”. A solução mais prática, como sempre, é voltar Àquele que sabe todas as coisas, inclusive os efeitos reais (positivos ou negativos) dos textos que escolho traduzir e seu lugar nos propósitos mais amplos da história da redenção, uma história na qual todos nós temos um papel.